Nunca sabia quando iríamos. Dependia da vontade de meu avô, dos compromissos escolares, dos problemas a serem resolvidos antes da viagem.
O certo é que em algumas manhãs de sábado, descendo até o quintal após o desjejum, avistava os cavalos amarrados ao tronco da frondosa mangueira, aguardando-nos para uma cavalgada até o sítio ‘Pouso Visconde de Taunay’.
Esta era uma pequena propriedade situada no local onde teriam descansado os soldados brasileiros em seu regresso da guerra do Paraguai. Meu avô, admirador dos grandes feitos de homens inteligentes, adquirira as terras por as haver identificado a partir do romance “A Marcha das Forças” de Francisco d’Esgregnole Taunay, o Visconde.
Saíamos sempre logo após os cavalos serem selados; eu na égua Estrela e vovô em seu formoso Negus, cavalo negro de longa crina e cabeça altiva.
– “No trote”, alertava ele saindo ligeiro pelo portão que ficava ao lado da Cosmopolita, sua grande loja de secos e molhados.
Eu o acompanhava feliz pela rua central da pequena cidade, agradecendo a todos que passavam e que a nós dirigiam palavras gentis pela façanha não mais muito comum naquela época. Isto porque, havia algum tempo, uns poucos automóveis nela circulavam tumultuando o trânsito de carroças, charretes e cavaleiros.
“-Cuidado, não puxe muito a rédea, que a égua assustada com o carro pode empinar”, advertia meu avô indo à frente como um comandante e fazendo jus ao seu cognome “marechal”.
Saindo da cidade, descíamos por uma estradinha íngreme com uma grande depressão lateral onde o lixo da cidade era lançado. Havia um cheiro acre no ar que irritava minhas narinas.
O silêncio imperava, enquanto nossas montarias, cuidadosamente, escolhiam os locais mais firmes para colocarem suas patas ferradas que, ao contato com as pedras, produziam um som metálico e soturno que me fazia entrar num estado onírico.
Passado algum tempo, o terreno ficava plano e eu, já alerta, perguntava algo a meu avô, que nem sempre respondia. Absorto em seus pensamentos cantarolava alguma canção muito antiga e eu o sentia feliz e em paz.
“-Veja quem está ali! É o Zé Faqueiro!”.
-“Bom dia, padim! Trouxe o meu presente?”
Meu avô tirava, então, do bornal um colete de brim caqui, ainda em bom estado, e o oferecia ao velho baiano que estendia a mão calejada para apanhar o mimo.
Não me recordo de ter visto expressão de prazer mais convincente em toda minha vida, do que aquela do Zé Faqueiro! Com o colete entre as mãos, não resistindo ao desejo, logo o enfiava por entre os braços e, sentindo-se vestido com rigor, mostrava os dentes num sorriso prazeroso. Ato contínuo, ele levantava as calças rústicas amarradas com barbante, para compor melhor o traje.
-“Vamu decê, tomá uma água, minina”, convidava o baiano que viera a pé da Bahia, segundo meu avô.
-“Obrigada, senhor, temos de continuar senão voltaremos muito tarde”, respondia eu, reiniciando a marcha.
-“Brigadu pelo presente, padim, eu adoro essa ropa, pois fico abrigado e c’os braçu livre pr’á trabaiá”.
Quantos coletes meu avô deu ao Zé Faqueiro nas muitas idas ao sítio, eu não sei dizer; porém, posso assegurar que o presente não mais saiu do corpo do baiano, assim como da minha memória durante todos esses longos anos.
E a viagem prosseguia pelas trilhas tortuosas do serrado, onde eu aprendi a saborear o marolo, a fruta-do-conde, a gabiroba, a mangaba, assim como a discernir o canto de um sem número de pássaros e a me encantar com a beleza dos ipês.
Quase chegando ao sítio deparávamos com uma mina d’água onde parávamos para que os cavalos saciassem a sede e pudéssemos apanhar um pouco de saibro, um tipo de areia usada para dar brilho às panelas de minha mãe.
O que os combatentes cansados de guerra aprontaram nas terras do sítio não se sabe, mas suponho que coisa boa não deverá ter sido! Lá se tentou fazer pomar, mandiocal, ter criação de vacas, cabritos, porcos, galinhas, sem que nada tenha vingado. Até as abelhas de colmeias cultivadas fugiram de lá!
Passados anos, minha mãe doou as históricas terras ao menino, então já adulto, que sempre levara o cavalo de meu avô a pastar. Gravados em mim ficaram, indelevelmente, o prazer e a alegria daquelas despretensiosas cavalgadas.
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