Carlos Gomes Musicando o Brasil
Na pessoa de Exmo. Sr. Presidente desta nossa Academia, Dr. Luiz Carlos Sotero da Silva, cumprimento as demais autoridades que aqui se encontram, os companheiros das entidades presentes, assim como o público que veio prestigiar esta homenagem ao nosso grande músico campineiro, parte das comemorações do Mês Carlos Gomes.
Primeiramente, neste ato, eu quero parabenizar o grupo de abnegados e apaixonados pela Cultura de nossa cidade que, ao chamado da Secretaria de Cultura da municipalidade, acompanhada no momento pela de Educação, a cada ano, não mede esforços para organizar um programa de atividades que faça jus à memória do Tonico de Campinas, durante todo o mês de setembro, mesmo com as dificuldades financeiras por que vem passando as entidades que representam na Comissão Carlos Gomes.
A propósito, acho oportuno citar Oswaldo Lacerda, músico brasileiro, que em 2012, no seu livro Curiosidades Musicais, à pag.30 diz: “Nos países do primeiro mundo a permanência no tempo da obra de um compositor falecido é cuidada por intérpretes, professores de música, entidades promotoras de concertos, gravadoras, musicólogos e, muitas vezes, por entidades estatais. O mesmo não acontece no Brasil (salvo honrosas, mas poucas exceções). Os intérpretes e professores se acham totalmente alienados de nossa música, as entidades promotoras de concertos só contratam artistas estrangeiros que, por sua vez, só tocam música estrangeira; as gravadoras não gravam música brasileira erudita, porque dizem (erradamente) que não há mercado para ela, e quanto às entidades estatais…é do conhecimento de todos, a incultura artística dos seus dirigentes.”
Acredito que não seja o caso de “incultura artística” de nossos Secretários atuais, mas que a Cultura, em sua total abrangência, não tem sido prioridade das administrações públicas nas últimas décadas, isto é um fato incontestável! Provavelmente, deva-se isto a não termos aprendido a valorizar nossa riquíssima e variada produção local, a explosão de criatividade que o caldo da mistura étnica nos proporcionou e a entendermos a Cultura, na maior parte das vezes, somente enquanto a Expressão Artística que a Europa burguesa nos legou. Ainda, como colonos que fomos durante quatro séculos, estamos sempre respeitando e difundindo o que vem de fora, seja de qualidade, ou não, e esperando o “de acordo” das potencias estrangeiras aos originais projetos que aqui concebemos.
Interessamo-nos pouco pela nossa história, conhecemos quase nada a respeito da trajetória de nossas cidades, dos sacrifícios feitos por gerações, dos valorosos heróis que, muitas vezes, dão nome às nossas ruas ou se espalham em monumentos pelos jardins. Cada vez mais me convenço de que somente um mergulho no mosaico cultural de uma metrópole é capaz de fazer seus habitantes sentirem-se parte dela, sendo este pertencimento o substrato essencial ao exercício pleno da cidadania.
Carlos Gomes, campineiro, o maior compositor das Américas do século XIX morreu há, exatamente, 122 anos em Belém, no Pará. Com exceção do nome, da foto e da protofonia do Guarani, dele nossa gente conhece muito pouco. Num primeiro momento, foi desdenhado pelos partidários da República nascente (1889), devido à sua eterna gratidão e fidelidade ao Imperador D. Pedro II, que sempre o apoiou, pois os proprietários de terras e de escravos de Campinas e arredores, então republicanos, estavam aborrecidos com o Império que proclamara a abolição da escravatura, fonte de suas riquezas. Pela mesma fidelidade ao imperador recusou-se a compor o hino da República. Mais tarde, continuou esquecido pela repulsa que o Movimento Modernista de 22, na sua busca pela brasilidade, teve por toda arte que refletisse influência européia, caso de suas óperas.
Num breve relato de parte de sua vida, direi que desde cedo Carlos Gomes revelou talento musical e estudou música com o pai, Manuel José Gomes, músico de excelente formação. Sua primeira aparição em público deu-se aos 10 anos, como integrante da Banda Marcial, sob a regência do seu pai. Estudou violino e piano, produzindo entre os 11 e 14 anos suas primeiras músicas. Bem jovem, com o irmão José Pedro de Sant’Anna Gomes violinista já conhecido na região, apresentou em salões e fazendas vizinhas suas modinhas, mazurcas e valsas.
Niza de Castro Tank, em seu livro Minhas Pobres Canções, diz que as Modas e Modinhas já animavam os salões da corte portuguesa durante o reinado de d. Maria I, sendo que a Moda indicava o canto, a melodia e a música. No Brasil, porém, ela passou ser cantada a duo, como no meio rural, acompanhada pela viola. A Modinha ficou no canto solo, lírica e sentimental, acompanhada pelo piano, cravo e depois pelo violão, já popular, expressando musicalmente as coisas de amor. “Quem Sabe” composta em 1859, quando Carlos Gomes transferiu-se para São Paulo, juntamente com o irmão, atesta o caráter brasileiro da composição gomesiana desse período.
É importante que se diga que a estada em São Paulo, o contato com os estudantes da Faculdade de Direito do Largo São Francisco para quem compôs o Hino à Mocidade Acadêmica, com poetas e figuras proeminentes em saraus literários e musicais e com a maçonaria ampliaram seus horizontes e o retorno à provinciana Campinas não mais lhe agradou, apesar da saudade, tão bem externada na modinha acima citada.
Sem sombra de dúvida, a experiência paulistana ofereceu a Carlos Gomes a oportunidade de adentrar ao nacionalismo musical que começava a se consolidar em diversos países da Europa e, também, no Brasil. Expressando a linguagem específica de cada nação, o nacionalismo crescente na Alemanha, Hungria, Polônia, Tchecoslováquia, Finlândia, Espanha e outros via como ilusório um mundo uno, principalmente sob o domínio de poucas nações (Áustria e Rússia). As polonaises e mazurcas de Chopin, bem como os temas populares musicados por Bartók exemplificam esse nacionalismo que canta a pátria oprimida.
No Brasil, o nacionalismo musical deu-se através de um progressivo contato estético do folclórico com o erudito, a partir das grandes transformações estruturais por que passou a sociedade brasileira, a partir da Independência. Melhor dizendo, os movimentos liberais e abolicionistas foram, aos poucos, diminuindo as distâncias sociais e a visão etnocêntrica em relação à cultura europeia.
O jovem Carlos Gomes, embora natural de uma Campinas escravagista, respirando os novos ares musicou, também, o país em que nasceu, com sua mescla de grupos étnicos, já nos meados do século XIX. Buscou uma linguagem própria e expressiva de seu povo, pondo em música “a arte que já está feita na inconsciência do povo”, no dizer de Mário de Andrade. Suas inúmeras Canções espelham a alma brasileira e constituem parte importante da produção musical nacionalista. Nas Modinhas e outros gêneros ligados às suas raízes, nosso grande compositor mostrou o valor da autoria de um mestre, desvencilhando-se dos padrões preestabelecidos da música europeia.
É importante dizer que, mais tarde, em suas óperas os temas brasileiros ainda se fizeram presentes, muitas vezes, mas a escrita musical já se tornou mais europeia, para maior satisfação das plateias.
Sabe-se, hoje, que coube a Carlos Gomes a primeira obra musical inspirada em fontes populares e não a Brasílio Itiberê da Cunha, pois a composição que logo iremos ouvir “Cayumba”, executada pela brilhante pianista Flávia Cavalcanti, data de 1857, enquanto a “Sertaneja” do compositor acima referido é de 1869.
A “Cayumba” é uma dança de negros que faz parte de “Quilombo”, uma pequena suíte composta de cinco partes, na qual o nosso grande compositor mulato rende sua homenagem aos Quilombos existentes, em sua época, na região de Campinas. Usando títulos alusivos à cultura dos escravos ele mescla a tradição folclórica, o nativismo e a urbanidade, produzindo uma peça própria da estética nacionalista.
Encerro estas minhas palavras introdutórias, informando que em 1980 o grande Fernando Lopes gravou a obra integral de Carlos Gomes para piano sob o título ”O Piano Brazileiro de Carlos Gomes”, onde se inclui esta composição que ora irão ouvir. Agradeço ao Conservatório Carlos Gomes, na pessoa da pianista Flávia Cavalcanti e do regente Leandro Gouveia, esta oportunidade que nos oferece.
Campinas, 03 de setembro de 2018.
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